Durante muitos anos, tive um serviçal, um ajudante que fazia tudo, um escravo, mas eu não o tratava assim. Éramos amigos e tinha por ele um amor e respeito quase tão grande quanto o que ele tinha por mim.
Tudo que precisava ser feito eu o chamava:
__ Nêgo tião, vem cá!
Ele prontamente surgia como que por encanto.
Ele prontamente surgia como que por encanto.
__ Sim sinhô, cá estô. Que posso fazê pelo meu amo?
__ Preciso de um serviço de pedreiro.
__ É prá já. Cadê o materiá?
__ Tá tudo aqui! Respondia, indicando um monte de sobras de outras construções.
__ Mas, meu sinhô, o que os patrão vai dizê do sinhô ter usado essas sobras?
__ Deixa comigo, tião. Com eles eu me entendo.
E era sempre assim. Ele cumpria as minhas ordens, fazia o melhor que podia com o material que eu lhe dava. E ele tinha razão. Daí a pouco chegava a patroa e os filhos e começava a discórdia.
__ Quem foi que fez essa merda aqui? Está um lixo!
__ Eu mandei o tião fazer! É culpa minha.
__ Vocês só fazem coisas erradas. Olhem para esta casa! Está cheia de remendos, coisas por terminar, tudo mal feito!
__ Nós fizemos o melhor com o que tínhamos.
__ Cagada... não tenho outra palavra. Se esse negro fosse meu escravo... ah se fosse meu!
E assim foi por muito tempo.
Um dia , chamei o tião.
__ Senta aqui, tião, vamos conversar!
__ Dá licença, sinhô.
__ Senta aí, disse eu com os olhos querendo marear e um aperto no coração.
__ Quantos anos faz que está comigo?
__ Não me lembro, sinhô, mais acho que faiz mais de trinta.
__ Quanto tempo meu velho!!! Qual era a sua idade quando veio pela primeira vez?
__ Sei não, mas devia tê uns sessenta e cinco mais ou menos.
__65?!! Então com os 30 que esta comigo... são quase 100 anos!!
__ Parece muito tempo, não é?
__ Meu querido velho! Disse-lhe eu, aproximando-me e aconchegando-me mais em seus braços que propriamente abraçando-o. Para mim, tião, tinha sido um companheiro fiel, prestativo, incansável e sempre pronto para obedecer minhas ordens, não importava o que fosse, nem a hora. Sempre estava a meu lado e me defendia como se filho seu fosse.
__ Meu amigo! Quanta luta e sempre com razão me dizia que iriam reclamar, mas nunca deixou de fazer o que lhe pedi.
__ O sinhô foi o melhó amo que já tive! Outros não assumiam a culpa. Quantas chibatadas levei sem nem saber porque! E as sinhazinhas que se zangavam por qualquer coisa e me mandava pro tronco!
__ Pelourinho, tião? Você foi surrado?
__ Do que o sinhô acha que são essas marcas? Não foram feitas nas muitas bataias que lutei!
__ Você lutou em alguma guerra?
__ Muitas. Vi muita gente morrer...
__ Sabe, meu bom homem, hoje vou liberta-lo de uma vez. Dar-te-ei a Carta de Auforria.
__ Mas sinhô! Tem muita coisa prá fazê.
__ Já é hora de descansar, meu velho. Respondi, virando-me para o lado e gritando:
__ Oh dona amélia, vem cá.
Dona amélia era minha cozinheira e quituteira predileta. Fazia os melhores pratos caseiros que já experimentei, os melhores pães e doces que já entraram em minha casa.
__ Senta aqui,venha conversar com a gente.
__ Mas sinhô, tenho muito serviço prá fazê.
__ Eu sei... eu sei! Há quanto tempo esta comigo?
__ Num sei não, mais quando o tião chegou, eu já tava aqui faiz tempo. Acho que foi logo que o sinhô nasceu.
__ Meu pai!!! Então qual a sua idade?
__ Acho que passei dos cem!
__ É hora e descansar! Vou lhe dar Auforria.
Ela levantou-se, tirou o avental, colocou-o sobre o braço da cadeira e aproximou-se de mim.
__ Eu nunca fui sua escrava, meu sinhô. Se cuidei do sinhô esses anos todos, foi pruque eu o amo mais do que a mim mesma!
Meus olhos encheram-se de lágrimas. Ela tomou-me nos braços, beijou-me a face, apanhou a carta que eu tinha nas mãos e saiu sem mais uma palavra. Dirigiu-se para a cozinha e queimou o papel, em seguida saiu e nunca mais a vi.
O velho tião permaneceu calado. Eu não sabia o que dizer.
__ Oia, sinhô, se quisé ainda posso aguentar muitos anos!
__ Minha divida com vocês não poderei pagar nunca! Acho que nesses anos todos o escravo fui eu. Sempre dependente, frágil e buscando abrigo e proteção em seus braços. Me perdoa! Se puder me perdoa! Disse-lhe quase em prantos.
__ Nada há para ser perdoado, sinhô. Por certo já lutamos muitas batalhas... mas depois que atravessar, derrubo a ponte.
Por um instante não entendi o que ele dizia.
Apanhou a carta, enrolou-a fazendo um canudo e colocou-a no bolso da camisa. Abraçou-me forte e por um longo tempo. Olhou-me dentro dos olhos e pude ver que os seus também estavam mareados. Nada mais disse. Saiu e foi para seu quarto, vestiu a armadura, apanhou o escudo e arrastando sua lança com desdém, montou em seu cavalo e partiu.
Hoje, olhando para trás, vejo-os nas lembranças. Sinto uma profunda saudade, mas por mais que eu os chame não os vejo em canto nenhum. É, ele derrubou a ponte. Segui seu caminho.
Um dia também terei que atravessa-la. Espero estar preparado para derrubar a minha ponte atrás de mim.
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