Omar Talih


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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Aventura na Bahia.

No inicio da década de 1980, após ser demitido dos Correios, resolvi tirar uns dias para passear e conhecer a Bahia.
Viagem decidida, fiz as malas, na verdade uma mochila com algumas peças de roupas e uma maquina fotográfica, (naquele tempo não existiam as digitais), alguns filmes e fui. No dia da partida, cheguei para minha mãe e disse: "Vou para a Bahia." Ela me olhou com ar de espanto e sem entender nada perguntou; "Como?". Apenas respondi: "Tchau, mãe!" e parti.
Os anos 80 eram cheios de lutas para derrubar a Ditadura Militar e eu sou um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, sendo filiado desde o início. Tomei um onibus na rodoviária em São Paulo com destino a Brasília de onde partiria para a Bahia. Sabia que tinha um primo em Taguatinga, cidade satélite de Brasília e fui procura-lo. Nada sabia sobre o mesmo e também era um desconhecido para ele. Pergunta daqui e dali, cheguei a sua casa. Fiquei por lá uns três dias e segui viagem.
No trageto até Brasília, a rodovia era razoável e o onibus oferecia conforto e segurança. Após comprar a passagem, dirigi-me para o terminal de embarque e começou a aventura. Me aguardava um onibus velho, mal conservado, com engradados amarrados no teto, com galinhas, porcos e sei lá mais o que. Para embarcar, pessoas de todas as partes do nordeste com crianças, muitas crianças. Quase todas subnutridas, esquálidas, pálidas, com cabeças muito grande e olhos esbugalhados. Soube durante a viagem que uma delas estava sendo alimentada apenas com agua e açúcar havia três dias.
Partimos. Meu destino era Santa Maria da Vitória, mas passaríamos por outras cidades até chegarmos. Encostado na janela, olhava a paisagem e tudo que via era um infinito árido, com terra rachada, ora parecendo o casco de uma tartaruga, ora as costas de um grande crocodilo. Havia esqueletos de animais mortos pela fome e sede, nenhum sinal de verde, apenas árvores retorcidas e secas.
Ao fim da tarde chegamos em uma casa que era ponto de parada para os viajantes. Não havia visto nem um sinal de vida nos últimos 200 km, então... ao entrar, notei que sobre  a mesa havia algo escuro, quase preto que, com um gesto do homem que estava na cozinha, levantou voo em nuvem, indo pousar em outra peça. Eram moscas. Ali que os viajantes paravam para fazer as refeições; os que podiam pagar. Menos da metade dos ocupantes do onibus.
"O que temos para comer?". ---Macarrão temperado com coloral (urucum) talvez, nº 8, daqueles que parecem um canudo de refrigerante, farinha de mandioca e carne.
Depois de ter saciado a fome, quis saciar a curiosidade e perguntei ao dono, garçom, cozinheiro, faxineiro do lugar que era ajudado por sua companheira.
---Carne do que?
--- De jegue!
---De jegue?
--- O sr. viu alguma vaca ou porco por aí?
--- Só carcaças!
---Então..! e foi atender aos outros fregueses. Já era noitinha quando embarcamos e seguimos viagem. Próxima parada, Barreira, pela manhã. Percorremos por uma estrada de terra, esburacada e cheia de costelas que me fazia sentir como se estivesse dentro de um grande vibrador. O onibus pendia para um lado e outro, deixando entrar galhos pelas janelas emperradas que há muito pedia manutenção. Para chegarmos até a cidade, descemos montanha abaixo por uns cinco ou dez quilometros, não me recordo, pois descíamos a noite e devagar, pelas péssimas condições do onibus e da estrada. Lembro-me que por sorte, quebrou o freio quando faltava menos de um quilometro e o motorista conseguiu parar sem danos ou ferimentos aos passageiros, mas a gritaria foi geral. Ficamos parados ali por umas dez horas até a chegada de outro onibus com um mecânico e peças para os reparos. Fizemos a baldeação e seguimos em frente. Foram mais 18 horas de viagem e algumas paradas. Chegamos ao destino.
Santa Maria da Vitória é cortada por um rio e do outro lado fica São Felix que pediu emancipação e gerou grande alvoroço, principalmente porque a prefeitura e a câmara municipal ficam ali. Após perguntar pelo meu anfitrião, que não sabia de minha chegada, fui procura-lo onde haviam me informado ser a sua casa. Após me apresentar, fui muito bem recebido, almocei, conversamos sobre muitas coisas que despertavam a curiosidade de ambas as partes, quis presentear meu meu anfitrião com anzóis e material de pesca que levara comigo. Ele muito gentilmente agradeceu  e recusou, explicando que o motivo era que; seu filho de 8 anos juntamente com outros amiguinhos da mesma idade, pegaram  um barco, anzóis e foram pescar. Fisgaram um Surubim que os arrastou muitos quilometros rio abaixo. Como ninguém sabia da "arte" dos garotos, a cidade ficou em polvorosa e foi montado um grande aparato para encontra-los, o que aconteceu apenas 30 horas depois. Eles estavam bem, encalhados, com o peixe ainda no anzol. Segundo o que me falou meu amigo, pesou mais de 30 kg. Na hora do banho, fui informado que por ali todos tomavam banho no rio. Todos, quer dizer a cidade inteira. O calor justifica e o preço da energia também. Mas, recomendaram que tomasse banho de cuecas, pois os peixes vinham ajudar na higiene e poderiam tentar levar a "minhoca". Foi muito agradável o banho com um cardume de peixinhos beliscando tudo que estivesse submerso. Bom, como meu objetivo, além do passeio, era fundar uma célula do PT naquele fim de mundo, comecei a trabalhar nesse sentido. Meu anfitrião fazia parte do grupo que governava a cidade e soube por ele que havia muitas desavenças entre o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e os proprietários de grandes fazendas da região. Fiquei por ali uma semana e havia visitado o outro lado do rio, São Felix, duas vezes. Um dia, estava esperando o barco para fazer a travessia, chegou meu amigo, um tanto ofegante e me chamando para o lado disse: "Acabaram de matar o presidente do sindicato com 8 tiros. Tá o maior reboliço na cidade. É melhor você sair daqui". Voltei para a casa dele e fiquei sabendo que tinha "gente" descontente com minha presença ali. Resolvemos que o melhor a fazer naquele momento era deixar a cidade e assim o fiz. Ele me contou que eu tinha uma tia  que morava a uns 150 km dali e que deveria procura-la e ficar por lá por uns tempos. Depois daria rumo a minha vida,"enquanto a tinha", pensei. Para sair da cidade, havia dois jeitos: de onibus, que tinha um de madrugada e outro de noite ou de "carona" que é um caminhão que cobra o mesmo preço e faz viagens intermediárias. Embarquei num desses por volta de seis horas da tarde. Deveria chegar a uma parada onde pernoitaria e seguiria o resto do caminho a pé. Me acomodei num canto e observei os passageiros. Pessoas estranhas, todas portando armas, creio que o único desarmado era eu. Como não conhecia nada e ninguém, aproximei-me do homem sentado a meu lado e perguntei se conhecia dona Rosália, minha tia. Ele olhou-me com ar de preocupação e apontando discretamente para um homem que tinha um grande defeito no rosto, com uma enorme pelota de um lado e a impressão de faltar um pedaço do queixo, colocou a mão sobre a boca e fez "Chiii!". Entendi o recado e calei-me. Mas a partir daí, já é outra história.

2 comentários:

  1. Omar, grata por ter passado no meu blog para comentar sobre minha 100ª postagem...Que hajam muitas ainda!
    Abs

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  2. Caro Omar, pedido escutado. Já estou aqui com algumas fotos de Tatiana Ramme, no próximo post, provavelmente amanhã, colocarei as fotos no blog Entre Publico e Privado.

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